Por Elísio Macamo
É meu desejo que quem vier a ocupar a Ponta Vermelha a partir de Janeiro do próximo ano acautele pelo menos três coisas: fazer-se rodear de pessoas que não tenham o hábito de lhe meter palavras bonitas na boca; desencorajar os que entre os seus apoiantes acham que devem aplaudir tudo, mesmo que não faça sentido; e, finalmente, elevar a fasquia da avaliação do desempenho político. A minha impressão é que serei decepcionado porque a mediocridade política atingiu níveis jamais vistos no país.
É assim: há diferença entre eu cavar um certo número de poços e dar à população, por um lado, e criar condições para que no país seja fácil e barato abrir poços, por outro lado. No primeiro caso, estamos perante uma acção de caridade; no segundo caso, pelo contrário, estamos perante uma acção política. Este segundo caso é que constitui uma realização, não o primeiro. Este princípio elementar da política vale para muito do que nos foi vendido como “legado” no discurso à nação.
A “paz definitiva” não foi nenhuma realização política, ainda que tenha sido boa coisa. Não foi porque não tirou do sistema político a conflictualidade que nos levou à situação onde precisamos de paz definitiva. A solução produziu distorções grotescas na estrutura do Estado – com os Secretários de Estado – e, é bom não esquecer, os problemas com a Renamo continuaram por muito tempo. O único que nos salvou do regresso à anterior situação foi o lamentável desaparecimento físico do líder da Renamo, o único que não tinha nenhum problema em hipotecar a paz na prossecução dos seus interesses (legítimos ou não).
Quer o Presidente Chissano, quer o Presidente Guebuza procuraram o diálogo, fizeram inúmeras concessões, mas os seus esforços sempre foram gorados pela mesma razão. Acho indecente alguém achar que o país alcançou a “paz definitiva” só porque um Presidente decidiu ir à Serra da Gorongosa. A ameaça de guerra com a Renamo não parou por causa da “paz definitiva”. A Renamo simplesmente se esgotou (e não nos esqueçamos que foi ainda “preciso” “eliminar” extra-judicialmente Mariano Nyongo...).
De Cabo Delgado prefiro nem falar.
Sobre o Conselho de Segurança das Nações Unidas só me ocorre algo que um ex-embaixador contou no aniversário de oitenta anos do Presidente Guebuza. Disse que quando se despediu do Presidente, este fez uma advertência nos seguintes termos: “por favor, não me venha com histórias de que temos que nos candidatar como membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas! A nossa prioridade é a agenda doméstica”.
Celebrar a preocupação com o supérfluo num país a braços com uma terrível violência contra o Estado, com raptos, desastres naturais, greves de funcionários públicos, etc. parece-me o cúmulo da perplexidade. Ademais, não resultou desta aventura diplomática uma política externa fundamentalmente diferente da que sempre foi praticada. E pior: nunca as relações de Moçambique com os países da região foram tão más como agora, sobretudo por causa da estranha e condenável preferência dada à subordinação de Moçambique ao Ruanda.
O governo que agora se despede teve o azar das calamidades naturais. Isso é um facto. Em todas elas, os estragos foram enormes. Nas últimas, lamentou-se por todo o lado a ausência do Presidente. O Gabinete que foi criado para a reconstrução pós-Idai, que se saiba, não fez nada notável. O sistema de gestão de calamidades é o que os governos anteriores montaram. O título de campeão de gestão de desastres naturais não é reconhecimento de feitos. É uma responsabilidade que um país voluntariamente assume para se ocupar dum dossier importante da União Africana. Só o facto de se pensar que se trata dum prémio mostra os níveis de perplexidade.
Podia ainda falar dos hidrocarbonetos, mas só estarei a repetir a mesma crítica. Não constitui realização firmar um acordo com uma multinacional. Constitui realização criar um sistema nacional de negociação. Tal sistema inclui uma boa política de defesa nacional, um projecto claro de desenvolvimento das regiões (que não se baseie na responsabilidade social), o incentivo ao empresariado nacional para tirar proveito da presença desses investimentos, etc. Não vejo nada disso. Não sei porque é um legado.
Mas o essencial é o seguinte: só pode falar de legado e realização política quem governou com base num projecto político claro. Este governo não teve nenhum projecto político, apenas geriu o país o melhor que pode. Não foi sua culpa. A Frelimo é isso mesmo como, aliás, vemos com o seu candidato que concorre em cumprimento duma missão, não porque tem um projecto político que quer implementar.
Um governo é julgado pela qualidade do seu projecto político. Curiosamente, não conseguir realizar esse projecto em pleno não é razão para se julgar que ele falhou porque só o lançamento de bases já é uma realização. Não há nada neste país que esteja bem e o pior é que a mediocridade começa do próprio partido.
Acho estranho que nos contentemos com tão pouco. Suponho que isso seja porque algumas pessoas têm critérios de avaliação sui generis. O informe à nação teria sido honesto e digno de aplausos se quem o proferiu tivesse tido a modéstia de reconhecer que logrou pouco. Reflectir sobre porque não fez (ou não fez mais) teria sido muito útil para o próximo governo. Só isso teria devolvido muito do respeito que este governo infelizmente perdeu.
Só que para fazer isso era necessário não só ter tido um projecto político como também ter alguma ideia do que significa ter projecto político. Medir desempenho político pelo número de edifícios que se construíram é um indicador deprimente da perplexidade que nos governou nos últimos anos. Como está o sistema de justiça? Tornou-se mais célere? Mais justo? Menos corrupto? Como estão as cadeias? Até que ponto o sistema penitenciário respeita os direitos humanos dos reclusos? Etc. Isso são critérios!
O país merece melhor. O melhor não pode ser quem está à frente. O melhor temos que ser nós. Precisamos de ser mais exigentes e de nos sentirmos ofendidos quando insultam a nossa inteligência. Só assim é que Moçambique vai realizar o seu potencial. Apesar de não estar optimista, espero que o próximo tenha maior respeito pela verdade.