Manifestam, muitos Camaradas, sérias preocupações sobre a questão da incompatibilidade constitucional entre a função de Presidente da República e a de Presidente de Partidos políticos que vem sendo sistematicamente violada desde a aprovação da Constituição de 2004
E concluem pela necessidade de se rever os Estatutos do Partido Frelimo que ainda mantêm o princípio da subordinação dos eleitos para os cargos governativos (e administrativos) indicados pelo Partido às instâncias políticas deste mesmo Partido. Estamos a falar do Art. 88 dos Estatutos.
Começaria por me fazer algumas perguntas iniciais.
Antes, porém: estará certo o leitor avisado ao perguntar-me onde estava eu para, só agora, vir levantar questões que deveria e poderia ter suscitado antes? Tem razão, eu não estava atento. É só o que posso dizer. Achei que não devia intervir constantemente na vida pública porque havia órgãos para isso. Ademais, é preciso dar espaço e ter confiança nas novas equipas governativas com a tranquilidade de saber que sempre tomarão as decisões mais correctas. Até que as coisas agravam e jogos de interesses e de poder me forçam à intervenção cívica.
A pergunta inicial é a seguinte:
O Art. 148 da Constituição, adoptado em 2004 sob o número 149, posteriormente re-arrumado como 148 que hoje ostenta, afirma o princípio da exclusividade da função de Chefe de Estado. O Presidente da República chefia o Estado e não pode fazer mais nada, seja como função pública, salvo quando tal esteja expressamente previsto na própria Constituição, seja a fortiori (por maioria de razão) exercer função privada. Em circunstância alguma...
Por exemplo, não pode acumular a chefia do Estado com o exercício de qualquer cargo ministerial, por exemplo Ministro de Defesa como muito gostam os militares golpistas de fazer pelo receio de serem também golpeados pelos seus Ministros da Defesa.
Mas muito menos podem eles exercer funções privadas: se possuem empresas ou escritórios devem explicitamente desobrigar-se de quaisquer funções. Para a gestão de um património acumulado legitimamente a regra é simples: o Chefe de Estado não dirige nada de privado, a titularidade de algum património ou acções em sociedades comerciais deve ser transparente e nenhum benefício ou favor pode existir pelo facto de ele ser Chefe do Estado.
Bem pelo contrário até maior cautela deve ser a regra em tais casos. Eu nem deveria ter que escrever sobre isso, só o faço por saber que a ligação Poder/Privilégio está ainda tão arreigada.
Mas a questão neste momento é a direcção de um Partido político. Neste artigo 148 se estabelece uma regra que vai contra toda uma filosofia anterior: que o Partido dirige o Estado, que deve haver unidade do poder, deve evitar-se conflitos inúteis ...
Partindo desse pensamento inicial, o pensamento político moçambicano evoluiu no sentido de o Estado ser visto como algo que é pertença de todos os seus cidadãos. O Partido ou organização que geraram o Estado deverão desejavelmente sentir que chegou o momento de emancipar o Estado, deixá-lo ter vida própria. Uma nova fase se anuncia, em que diferentes visões do país e do mundo, levam a posições diferentes, a escolhas políticas diversas e, portanto, a Partidos diferentes e em competição. O Estado afirma-se como de todos, regido por regras visíveis e equânimes, não favorecendo nenhum dos grupos ou agremiações dentro do espectro político.
Até aqui, em princípio, todos de acordo.
Estamos perante uma disposição constitucional de implementação imediata, que não carece de regulamentação. Questão que nos deixa perplexos: o Presidente da República que continue a exercer a função de Presidente do Partido Frelimo, não está a violar flagrantemente a Constituição?
Resposta imediata, genuína e honesta: renúncia, imediata, do Presidente do Partido Frelimo ao seu cargo no Partido. Esta renúncia deve desejavelmente ser voluntária e na sua falta, tal decisão deve ser tomada pelos respectivos órgãos partidários e, em última instância, imposta por órgão estatal competente que só pode ser o Conselho Constitucional. Resposta simples a um problema que só se tornou complexo por via de uma gritante e contínua violação da Constituição, ao longo dos tempos em que não podemos persistir. Violação reiterada de regra constitucional não cria “costume” constitucional, diferentemente do que ocorre ao nível da legislação ordinária no contexto do Direito Administrativo.
Passando agora a analisar o problema do ponto de vista do Partido político, socorrendo-me da experiência como Secretário de Organização do Comité Central de 1977 a 1983 e membro do seu Bureau Político a partir de 1983 (IV Congresso), sobretudo a primeira enquanto Secretário de Organização. É minha ponderada opinião que o Partido Frelimo, enquanto organização política, pouco beneficiou desta sobreposição de funções.
O múnus de um Partido são ideias, uma certa maneira de ver as coisas, um projecto de sociedade para o futuro. Ideias podem atingir ou não uma certa estruturação. A Frelimo teve a rara felicidade de elaborar as suas ideias de forma clara e escrita através textos como “Estabelecer o Poder Popular Para Servir As Massas” que define como organizar o poder e na mesma área o texto seminal que é o discurso do Presidente Samora na Tomada de Posse do Governo de Transição em 20 de Setembro de 1974, “A Libertação da Mulher É Uma Necessidade da Revolução, Uma Garantia Da sua Continuidade, Uma Condição Do Seu Triunfo,”, que estabelece o principio da igualdade para as mulheres, proposição socialmente revolucionária, e encontram-se em áreas sectoriais que mereciam maior atenção do pensamento revolucionário em textos como “No Trabalho Sanitário Materializemos o Princípio que a Revolução Serve o Povo”, “Fazer da Escola uma Base Para o Povo Tomar o Poder”, “Produzir é Aprender, Aprender para Produzir e Lutar Melhor”...
Que efeito teve a sobreposição Partido-Estado?
Na teoria existe uma ideia mítica segundo a qual o Partido pensava e o Estado executava. Na prática, o Partido em sua fase embrionária, passou a beneficiar da reputação do Presidente da República e do seu poder de persuasão. Mas, igualmente, subalternizou a tarefa principal de convencer pessoas, discutir as dúvidas, avaliar o impacto das decisões políticas, que na realidade são o coração, o múnus essencial de qualquer Partido.
E essa dinâmica nos impõe uma observação mais atenta sobre os “Partidos políticos” entanto que organizações.
Com o passar do tempo, os funcionários do Partido deixaram de ser motivadores, mobilizadores, passaram a ser funcionários do aparelho, passam a ser eles o Partido todo poderoso. Esse caminho foi trilhado por dezenas de organizações inicialmente revolucionárias que, sem querer e se aperceberem soçobraram no que podemos chamar o apparitchikismo. O nome vem da língua russa, o primeiro vitimado foi o Partido Comunista da União Soviética, o PCUS, cuja tradição militante e precursora caiu vítima do burocratismo. Independentemente dos ideais políticos, há uma componente organizativa de vida dos Partidos Políticos que merece ser estudada.
A temática de organização do poder tem de ser sentida, vivida e gerenciada de modo adequado. Assim, um debate mais amplo é requerido. A classe política moçambicana que construiu este país e continua a constituir o seu esteio é de novo para aqui chamada, as novas formas de pensar a organização política do país e soluções para problemas reais tem de ser adoptadas com coragem. É função do Direito prever problemas e definir soluções em abstracto.
E o que diz a Constituição?
Primeiro, que um Presidente da República não pode ser dirigente de um Partido.
Segundo, daqui decorre que estamos, desde a entrada em vigor da Constituição em 2004, portanto há alguns mandatos presidenciais, em plena inconstitucionalidade, porque temos um Presidente da República que também é Presidente de um Partido, o Partido Frelimo. Não nos voltemos para trás. Mas não persistamos no erro.
Terceiro, não se prevendo nenhum regime de transição em disposições transitórias ou de suspensão desta regra imperativa, a Constituição deve ser respeitada de imediato.
A inconstitucionalidade deve ser imediatamente sanada, lá onde ela se verifica, ou seja no artigo 88 dos Estatutos do Partido, como acima apontamos, que estipula a subordinação de dirigentes do Estado a instâncias partidárias.
O princípio da incompatibilidade entre as funções de dirigente partidário e dirigente estatal faz parte da nova matriz constitucional de uma sociedade democrática organizada sob o prisma dos pluralismos jurídico (Art. 4), político (Arts. 53 e 74), económico (Art.99), etc., o que implica, entre outros princípios, a não partidarização do Estado e da sua máquina administrativa (Arts. 248 e 250 ), a separação e interdependência (e não dependência) dos três poderes do Estado: parlamento, Governo (onde se inclui o Presidente da República) e tribunais (Art. 134) e a independência dos tribunais e dos juízes (Art. 216).
E isto implica, revisitar e adequar, em cascata, toda uma série de legislação ordinária, com destaque para as leis que versam sobre os Partidos Políticos, as empresas públicas, as Bases de Organização e Funcionamento da Administração Pública, a Organização Judiciaria, a orgânica da jurisdição administrativa, a orgânica do Ministério Público e da PGR, o estatuto dos juízes, e sobre a própria orgânica do Conselho Constitucional.
É um passo em frente que o país deve dar e o Partido Frelimo deve tomar a iniciativa. Começar por rever o art 88º dos seus Estatutos no que contém de imposição administrativa a órgãos estatais.
Finalmente, o Partido Frelimo é uma organização séria e respeitável.
Em momentos de transição há um dever de reserva, uma atitude de contenção num fim de mandato. Mais do que imposição legal, é questão de boas práticas, boa educação cívica.
O actual Presidente da República deve deixar a Presidência do Partido Frelimo, para afirmar o seu próprio respeito pela Constituição da República.
De igual modo, o próximo Presidente da República está impedido de ser Presidente do partido através do qual se elegeu ou de qualquer outro Partido político.
EM JEITO DE CONCLUSÃO
O Partido Frelimo ou de uma forma geral a Frelimo, quaisquer que tenham sido as suas armaduras institucionais ao longo dos tempos, é um esteio da organização social deste país.
O Partido Frelimo tem estado a reboque dos Presidentes da República e dos acidentes da sua governação, em detrimento do seu papel insubstituível de defensor das causas nobres, da igualdade dos homens e mulheres e sobretudo de defensor dos mais pobres, das largas massas, para usar uma palavra abandonada senão proscrita. Sim, precisamos de empresariado nacional, de organizadores de processos produtivos, a industrialização é uma exigência que não está a ser levada suficientemente a sério. Eles devem ter a consideração social que corresponde ao seu papel patriótico e a remuneração justa da sua criatividade, imaginação e iniciativa. Mas os Partidos como o nosso, o Partido de Mondlane, Samora e Marcelino, existem para reequilibrar a sociedade, defender os mais fracos.
Poderá ser discutido em fórum apropriado se o Partido Frelimo precisa de um Presidente. Os partidos políticos em geral não têm Presidentes, com o que tal implica de emitir comandos. Poder-se-á mesmo perguntar se, afora condições excepcionais ou comodismo político, tal não deve mesmo ser um estado normal, natural num Partido. Um Partido cuja razão de ser é congregar vontades políticas, influenciar pela força das ideias a marcha da sociedade, não é mais uma máquina para gerar desenvolvimento. O Estado está lá para isso.
No Partido Frelimo, nós queremos uma sociedade mais justa, justiça social, desenvolvimento equilibrado e igualizante, um mundo sem opressões e sem guerras. Subordinamos os nossos egos e os nossos apetites ao bem comum. Temos moral e comportamo-nos bem.
Precisamos de um Secretário Geral que faça esse trabalho sem tentações de vir a ser Presidente. Politicamente combativo, ambicioso nos objectivos políticos, pessoalmente desprendido. É possível. Este Partido tem história e tem pessoas. Tem qualidade e tem mecanismos como Conferências de Quadros que são o fórum adequado para discutir estes problemas.
O futuro depende de nós!
SAVANA – 27.09.2024