Escrevem Marie Jégo e Margaux Seigneur, correspondentes do Monde em Moscovo: "Apareceu um estranho modelo económico, segundo o qual um russo morto rende mais à família do que um russo vivo. De facto, se um homem decide partir para a guerra e morre entre os 30 e os 35 anos, ou seja, na idade em que é mais activo e está em melhor forma, a sua morte é economicamente mais ‘rendível’ do que o seu futuro." É uma realidade brutal. O mecanismo é inédito e simples. Primeiro, o Kremlin impôs uma economia de guerra, modelo clássico que subordina a economia ao esforço de guerra, que implica um exponencial aumento da despesa pública e mantém, pelo menos a médio prazo, o crescimento económico. Mas era insuficiente. Putin reinventou então o "ovo de Colombo". No início da guerra da Ucrânia, os recrutas escondiam-se ou fugiam, os soldados desertavam ou mutilavam-se. Primeiro, recorreu-se aos presos comuns e a milícias privadas, como o Grupo Wagner. Sempre foi intensa a propaganda para o alistamento militar. Mas não é hoje o principal factor que leva os dirigentes a considerar que a falta de efectivos na frente da guerra foi superada. São agora anualmente recrutados 200 mil novos homens. O que é o novo modelo? Aos soldados são prometidos, e pagos, soldos mirabolantes. As famílias recebem generosas indemnizações pelos seus mortos. Há regiões, sobretudo as mais pobres, para quem estes novos rendimentos se tornaram um factor de prosperidade. O PIB dessas regiões cresceu. O desemprego caiu em toda a Rússia. "A penúria de mão-de-obra é actualmente o principal problema da Rússia", afirma a economista Alexandra Prokopenko. A inflação sobe. Mas a situação económica russa é surpreendentemente positiva. Apesar das sanções, como maior exportador mundial de matérias-primas, Putin dispõe de dinheiro para os soldados e para as famílias. O futuro é outra questão. Para o Kremlin, a prioridade é a guerra. "Desde sempre os russos foram para o exército por coerção ou por patriotismo. Vladimir Putin criou uma realidade completamente nova", explica o economista russo Vladislav Inozemtsev, hoje emigrado e investigador do Russia Media Studies Project no MEMRI, em Washington. Chama ao novo modelo "Economia da Morte" (Putin’s "Deathnomics"). Por outras palavras: "O regime de Putin não só glorifica e enobrece a morte. Também faz dela uma escolha racional. (…) Na Rússia contemporânea, a morte na guerra não é apenas um ‘destino honroso’, mas também um meio lucrativo de acabar com a própria vida." O grande bónus The Economist, em Julho passado, escrevia que novos estudos indicavam que o número de mortos russos ascenderia a um número entre 66 mil e 88 mil em 31 de Dezembro de 2023. Fontes oficiais americanas subiam esse número para 120 mil. A BBC Russia falava em 113 mil até Julho passado. Fontes francesas referiam 150 mil. O número total de baixas, incluindo os feridos, é muitíssimo mais alto. Para esclarecer o leitor, lembro que um rublo equivale a um cêntimo de euro. Um milhão de rublos vale aproximadamente dez mil euros. Em Julho, Putin elevou o soldo dos militares contratados de 195 mil rublos para 400 mil, dez vezes mais do que o salário mínimo. |
A isto se soma um prémio de 1,2 milhões de rublos (cerca de 12 mil euros) na assinatura do contrato. Dentro da regra publicitária "compra um e leva dois", um recruta que traga um novo colega voluntário recebe outros 100 mil rublos (mil euros). Putin chama-lhes a "nova elite" e faz-lhes promessa: a possibilidade de acesso às mais prestigiadas universidades sem ter de prestar provas. Dissemos acima que as famílias recebem generosas compensações pelos seus mortos e uma pensão vitalícia. Também os feridos são indemnizados e tratados gratuitamente.
Comenta Inozemtsev: "A morte é uma hipótese provável, sobretudo na frente do Donbass, em que, segundo analistas ocidentais, as forças russas chegaram a perder mil soldados por dia. O Estado compensa na condição de os cadáveres serem recuperados. "Mas cerca de um terço dos mortos não são identificados e, consequentemente, nenhum pagamento é feito [à família]".
A quem aproveita a guerra?
"Os sociólogos podem debater a intensidade com que a os russos apoiam o regime de Putin, mas não há dúvidas de que maioritariamente o apoiam", escreve a economista russa Ekaterina Kurbangaleeva, especialista na "economia de guerra" do Kremlin. Explica: "As razões geralmente apontadas são a propaganda de massa e o estrito controlo da vida pública e uma renascida mentalidade imperial: o sonho de voltarem a viver numa grande potência reconhecida e temida."
Mas estas razões não são o principal. Kurbangaleeva, que hoje trabalha no Ocidente, aponta outros factores: "Muitas pessoas na Rússia têm um interesse puramente pragmático e material em apoiar o regime, dado um significativo aumento dos seus rendimentos sobretudo nas regiões subsidiadas e entre as camadas pobres da população."
Há situações opostas: "Para algumas regiões russas, a invasão da Ucrânia significou uma quebra dos seus rendimentos de exportação devido às crescentes sanções. Para outras, significou um afluxo de dinheiro sem precedentes e um crescimento do consumo interno, graças à guerra."
Num artigo publicado no Moscow Times (hoje editado em Amesterdão para contornar a censura), interroga-se a mesma economista sobre as consequências do afluxo de dinheiro proveniente da "economia de guerra" e do exponencial pagamento dos soldados. "Como estão os russos a gastar este dinheiro?" Estão, ao mesmo tempo, a poupar, em depósitos bancários, aproveitando a subida dos juros, e sobretudo a gastá-lo em consumo.
Há, claro, um efeito político. "Os maiores beneficiários da guerra na Ucrânia são profissões que eram mal pagas e de baixo estatuto. (…) Mais dinheiro nos bolsos destas pessoas – pouco dadas à reflexão e sem acesso a fontes independentes de informação – torna-as mais susceptíveis à propaganda. (…) Não surpreende que o nível de apoio ao regime russo esteja a crescer nestes grupos."
Outro economista russo, Pavel Luzin, corrobora esta análise em declarações à Radio Free Europe (RFE). Estas receitas duplicaram nas regiões mais pobres e estão a provocar mudanças fundamentais nas economias locais. "Mas os pagamentos pelas baixas [de guerra] não se estão a transformar em capital financeiro. O dinheiro é gasto na amortização de empréstimos bancários e nas necessidades urgentes das famílias – em especial os pais –, na aquisição de apartamentos, na construção de casas, na compra de automóveis e assim por diante. Entre outras coisas, este dinheiro contribui para uma alta inflação, em toda a Rússia.
Por quanto tempo?
Muitos dos "vencedores da nova economia da morte" têm boas razões para temer o fim da guerra na Ucrânia. Mas é este modelo politicamente sustentável durante muito tempo?
A Putin, cuja prioridade é a guerra, o futuro interessa menos. Andrei Yakovkev, economista russo que ensina em Harvard, calcula que "os soldados desmobilizados tenderão a esperar terem altos salários. (…) De um ponto de vista político, isto pode ser perigoso para o Kremlin", declara à RFE. "Seria mais barato para o Kremlin manter esses soldados na linha da frente. Porque eles vão voltar para a Buriácia ou para a Chuváchia, e confrontar-se outra vez com baixíssimos salários (…) sem rendimentos comparáveis."
Moral da história, segundo Ekaterina Kurbangaleeva: "Para alguns, a guerra é um inferno, para outros ela paga bem."
Jorge Almeida Fernandes
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