Por Carlos Matos Gomes
Depois da Palestina, o Líbano. A história das origens da civilização ocidental está a ser reescrita diante dos nossos olhos de europeus que a deviam conhecer para defender os seus fundamentos, para, no mínimo conhecer as fontes. Mas a palavra de ordem do império é a ressuscitada frase Delenda est Carthago, Cartago deve ser destruída”, da oratória latina na República Romana, no século II a.C., durante os últimos anos das Guerras Púnicas, travadas por Roma contra Cartago, que tinha por objetivo eliminar qualquer ameaça à República Romana.
O Líbano fazia (o novo império está a rescrever a História da Europa com a cumplicidade dos que se lhes venderam) parte da nossa história, da História da Europa. Ali viveram e desenvolveram uma cultura os povos que se chamavam cananeus a si mesmos, a quem os gregos tratavam como fenícios — talvez a designação mais comum e difundida do povo de mercadores e navegadores que difundiu a cultura mediterrânica para o norte da Europa, ligando o Mediterrâneo ao Atlântico (o que merece (mereceria respeito), à Península Ibérica (várias povoações costeiras sáo de antigas colónias fenícias) e ao norte da Europa. Os romanos designaram por púnicos os fenícios da Cartago africana. Estes elementos constam das enciclopédias.
A nova Europa não inclui o Líbano no seu património, nem a Palestina — há que arrasar a Palestina e o Líbano, como já foram arrasadas as culturas da bacia dos rios Tigres e Eufrates, o berço da civilização, Siria, o Iraque. Há uma nova história da Europa imposta pelo novo império e esta nova Europa tem data de fundação e autor.
Em 10 de maio de 1945, o presidente Truman assinou a diretiva de ocupação da Alemanha, que ficaria conhecida como o “plano Morgenthau”, o nome do Secretário do Tesouro dos EUA, que defendia medidas restritas para evitar a possibilidade de a Alemanha entrar novamente em guerra, entre elas a desmilitarização do país e o desmantelamento do seu parque industrial (a proposta da Russia para a Ucrània não foi uma invenção de Putin.) A Alemanha seria dividida em dois estados independentes (a divisão da Alemanha foi uma decisão dos Estados Unidos), as grandes regiões industriais e mineiras do Saar, Ruhr e Alta Silésia deviam ser internacionalizadas, isto é, abertas aos capitais e às empresas americanas, como de facto foram. O plano americano foi apoiado por Estaline, com a garantia de que as forças de ocupação americanas não fomentariam a reabilitação do poderio militar e económico da Alemanha. A Alemanha Ocidental seria um estado vassalo dos Estados Unidos e a Oriental da União Soviética. Na Europa, a guerra fria teve como consequência que a Alemanha passou a ser o pivô da política dos Estados Unidos e da União Soviética, os seus dirigentes, Konrad Adenauer, conservador, e Willy Brandt, social-democrata pela República Federal Alemã e Wilheim Pieck, Walter Ulbricht e Erich Honnecker, pela República Democrática Alemã, serão os governadores locais.
A divisão da Europa entre as duas super potências vencedores encontra-se muito bem explicada nas memórias de Churchill sobre a Segunda Guerra, um livro publicado em Inglaterra em 1948 e com várias edições em português.
Em setembro de 1944, pouco antes da reunião de Yalta, Churchill, ratificado (endorsed by, nos termos ingleses) por Roosevelt, o presidente dos Estados Unidos, acordou com Estaline que a Grécia seria um feudo ocidental. Com base neste acordo, as tropas britânicas e as forças gregas no exílio, as do governo monárquico, que haviam combatido os Aliados ao lado da Alemanha e da Itália, tinham as mãos livres para atacar as forças que haviam resistido ao nazismo e ao fascismo, o Exército Democrático da Grécia (ligado ao Partido Comunista Grego) e a Frente Nacional de Liberação. Na sequência deste acordo todos os gregos que haviam servido a administração grega integrados na ordem nazi no exército, nas polícias, nos batalhões de segurança mantinham os seus cargos. Churchill e Roosevelt, faróis do mundo livre e da democracia, não hesitaram em adotar todos os corpos da administração que haviam sido funcionários colaboracionistas dos nazis e fascistas para lutar contra a resistência, porque esta fora conduzida pelo partido comunista grego (KKE). Como o partido comunista grego se encontrava mais próximo do partido comunista da Jugoslávia e da autonomia de Tito relativamente à União Soviética de Estaline, os ingleses entregaram-lhe o seu secretário-geral, Nikos Zachariádis, com o grupo dirigente.
No seu livro, Churchill descreve como foi acordada a partilha dos Balcãs no decorrer da viagem a Moscovo em 9 de setembro de 1944, acompanhado por Anthony Eden, ministro dos negócios estrangeiros britânico, tendo do outro lado da mesa Estaline e Molotov, o ministro dos negócios estrangeiros da União Soviética. Segundo o seu livro de memórias, Churchill, no que é uma rara publicação do modo como os assuntos que definem a vida de milhões de seres são tratadas, terá dito a Estaline: «Vamos acertar os nossos negócios nos Balcãs. Os seus exércitos estão na Roménia e na Bulgária. Nós temos interesses, missões e agentes nesses países. Vamos evitar ferir-nos por questões que não valem a pena. No que diz respeito à Grã-Bretanha e à Rússia, o que diria você a uma predominância de 90% na Roménia para si e a uma predominância de 90% para nós na Grécia, a uma igualdade de fity-fifity na Jugoslávia? Enquanto traduziam as minhas palavras, escrevi numa folha de papel:
Grécia
Grã Bretanha e Estados Unidos 90%
Rússia 10%
Hungria 50–50%
Bulgária
Rússia 75%
Outros 25%
Coloquei o papel diante de Estaline a quem já havia sido traduzido. Ele manteve-se a refletir por um curto espaço de tempo e de seguia pegou na sua caneta de tinta azul com a qual traçou um símbolo que significava a sua aprovação. Tudo foi acordado em menos tempo do que o necessário para o descrever.»
Esta foi a origem da atual Europa. O talhão Ocidental foi reconstruído com o Plano Marshall, que, como atualmente com a guerra na Ucrânia, também serviu para evitar uma crise económica nos EUA provocada pelo fim da economia de guerra.
As atuais guerras na Ucrânia e no Médio Oriente fazem parte da estratégia de domínio incontestado de um império que tem de destruir todos os divergentes, ou desafiadores. Uma estratégia baseada numa frase elucidativa que carateriza a maior e mais antiga competição náutica mundial a Taça da América (no original America’s Cup) — There is no second — Não há segundo, respondeu o diretor da regata à rainha Vitória quando esta quis saber qual era o método da classificação.
É o desenvolvimento desta estratégia dos Estados Unidos, como detentor do troféu, que pretende manter a todo o custo e que é vital para a sua sobrevivência, aquilo a que estamos a assistir na Europa, e a colaborar quando estão a surgir novos poderes desafiantes, os BRICS. A Europa é a Carthago que tem de ser destruída, não por representar uma ameaça, mas para ser um espaço de fidelidade absoluta no apoio à manobra do novo império. A estratégia dos Estados Unidos tem sido, desde a Segunda Guerra Mundial, a da obtenção da “servidão voluntária” por dissolução dos seus valores e do seu passado. E o primeiro passo é a destruição da memória. Até a Alemanha já surge como vencedora da Segunda Guerra!