Menos de uma década depois de Moçambique ter sido oficialmente declarado como país livre de minas terrestres, a população de Cabo Delgado vive novamente o terror desta ameaça, com novos relatos a surgirem nos últimos meses naquela região do norte do país
Segundo o relatório do Armed Conflit Location & Event Data (ACLED), o número de vítimas provocado por minas terrestres em Cabo Delgado sofreu um aumento de 300% entre o segundo semestre de 2023 e o primeiro semestre de 2024, do qual 75% entre a população civil. Ainda segundo a mesma fonte, de entre as vítimas civis, 83% eram crianças.
A província viveu um período de aparente acalmia durante o ano de 2023, com o uso por parte dos insurgentes de engenhos de fabrico artesanal (IED´s, Dispositivos Explosivos Improvisados), até que em dezembro começaram a surgir relatos do uso de engenhos mais sofisticados e destinados “com sucesso” contra as forças de segurança presentes na região, tendo sido registadas um total de 26 detonações.
Os ataques com este tipo de engenhos têm ocorrido sobretudo nas vias rodoviárias que ligam as principais vilas e cidades de Cabo Delgado, com especial incidência para os distritos de Macomia, Muidumbe e Mocímboa da Praia, na zona sul da província, embora já haja também registos de detonações na região de Palma, no norte.
A intensificação dos ataques com estes engenhos nas últimas semanas tem provocado algum receio nas populações, atrasando não só o seu regresso às suas aldeias de origem, como causando a chegada às vilas e cidades de novos refugiados, temendo-se que a violência possa vir a piorar após as eleições desta quarta-feira, 9 de outubro.
Há mesmo quem associe o agravamento da situação nas últimas semanas a um aproveitamento por parte dos insurgentes do ambiente que se pode vir a viver no país no período pós-eleitoral.
“Em Moçambique, desde que há eleições, sempre houve alguma agitação após as mesmas com acusações de fraude por parte da oposição. Este ano não será diferente, podendo mesmo ser pior, dadas as enchentes que marcaram a campanha eleitoral de um dos candidatos, Venâncio Mondlane, o mais bem posicionado na corrida à presidência, contra Daniel Chapo, candidato da FRELIMO, partido no poder e que governa o país desde a independência”, diz uma ativista local, cuja identidade pede para não ser revelada por receio de represálias.
“Na verdade, ainda pouco se fala desta situação das minas terrestres em Moçambique, e o pouco que se fala é ´à boca fechada´ pois o medo é grande, mas aqui em Cabo Delgado, mesmo as ONG´s e entre a população falamos dos riscos e dos cuidados que devemos ter com o regresso deste tipo de ameaça. É algo que a população mais velha ainda não esqueceu.
Foram décadas a viver com esse flagelo, uma memória dolorosa deixada pela guerra civil e que vitimou milhares de pessoas, maioritariamente civis. Já estávamos livres dessa ameaça, que agora voltou e cujas consequências são difíceis de prever a médio prazo.”
MOÇAMBIQUE LIVRE DE MINAS TERRESTRES DESDE 2015
O anúncio oficial de Moçambique como país livre de minas terrestres, ocorreu a 18 de setembro de 2015. Publicado no Portal do Governo moçambicano, pôs fim a mais de duas décadas de um programa de desminagem que tirou o país da lista dos cinco países do mundo mais ameaçados por este tipo de armamento, onde constavam também o Camboja, Afeganistão, Angola e Sudão.
“Temos detonações que estão filmadas e que correm nas redes sociais. Sabemos que são verdadeiras porque depois são corroboradas pela população local. No fundo, achamos que os insurgentes nas últimas semanas estão a ficar mais ousados e a efetuar ataques como já não faziam desde antes da chegada das tropas ruandesas em 2021”, acrescenta aquela ativista, relatando o ataque ocorrido em Mocímboa da Praia há duas semanas. “Eram cerca das 21h, começamos a ouvir tiros e gritos. Atacaram mesmo dentro da vila e logo no início do tiroteio uma menina de 15 anos foi morta no fogo cruzado. Eles nunca tinham vindo atacar as tropas dentro da vila, foi a primeira vez. Ficamos abrigados e só saímos na manhã seguinte. Não sabemos dizer quantos mortos houve de ambos os lados porque eles retiraram os corpos e ninguém nos fala disso, mas foram muitos, porque as ruas estavam cheias de sangue.
Houve pessoas que depois deste ataque quiseram abandonar a vila com medo, mas disseram-nos para não sairmos porque os insurgentes colocaram minas nas estradas para dissuadir as nossas tropas de os perseguirem. De facto, perante essa ameaça, acabamos por estar mais seguros aqui”, afirma a ativista.
Também na última semana de setembro os insurgentes decapitaram um homem nos arredores de Palma, naquele que foi o primeiro ataque às portas da cidade desde 2022.
Confrontos diretos entre as forças de segurança apoiadas por militares ruandeses contra os insurgentes ocorridos em setembro nos arredores das principais vilas de Cabo Delgado foram também registados pelo ACLED, que relata ainda a colocação de minas terrestres nas principais ligações de Macomia à zona costeira. No seu relatório sobre a situação em Cabo Delgado, esta organização relata ainda a ofensiva levada a cabo por tropas ruandesas na última semana de setembro contra uma base insurgente em Quiterajo e a recuperação da cidade costeira de Mucojo.
Apesar da situação, Rui P., expatriado, com empresas naquela província do norte de Moçambique há 10 anos, considera que não há motivos para alarme. A comunidade estrangeira na região vai estando atenta aos ataques, grupos de WhatsApp vão ajudando a acompanhar a situação no terreno e apesar de reconhecer que houve um agravamento dos relatos de ataques nas últimas semanas, acha que é uma situação passageira.
Também para este empresário, uma eventual associação do aumento dos ataques à aproximação das eleições tem sentido. “Há um evidente descontentamento das populações locais face ao governo que está sedeado no outro extremo do país. Esse descontentamento torna-se mais visível em períodos eleitorais e ninguém sabe o que vai acontecer após o anúncio dos resultados, pois sejam eles quais forem, vai haver sempre quem não concorde, abrindo caminho para a agitação social e consequentemente para os insurgentes tentarem reforçar a sua posição no terreno.”
Segundo Rui P., apesar da segurança nos principais centros populacionais, houve pessoas que preferiram sair da província, e ir para a capital, Maputo, ou mesmo sair de Moçambique para umas férias nos seus países de origem até ver ´o que isto vai dar´.
“Estamos todos um pouco na expectativa. Até nos grandes projetos de GNL [gás natural] nota-se menos movimento nas últimas semanas e há mesmo informações de que houve empresas que preferiram repatriar temporariamente os seus trabalhadores.”
Sobre as minas terrestres, este empresário que assume que viaja frequentemente de carro entre as principais vilas da província, reconhece que “é uma situação que já se ouvia falar há uns meses, mas que piorou nas últimas semanas. Não deixa de ser preocupante, porque a economia da província passa por essas vias. Em alguns casos a população local faz as ligações de barco também, mas apesar dos relatos será difícil prescindirmos de fazermos as ligações pelas vias rodoviárias.
Até ao momento, tenho sentido alguma segurança. Vamos ver o que acontece nas próximas semanas”, conclui.
A corroborar este testemunho, Peter Bofin, Coordenador Sénior de Pesquisa do ACLED, afirma que não só é esperado um aproveitamento de eventuais tumultos pós-eleições por parte dos insurgentes em Cabo Delgado, mas também nalguns focos na província de Nampula, onde a oposição ao Governo central é forte.
No entanto, os relatos de insurgentes a circularem próximo das aldeias no norte, estão também muitas vezes associados à procura de alimentos, ou mesmo ao sequestro de pessoas por quem pedem comida, como batatas, mandioca ou tomates, como moeda de troca, segundo o relatório do ACLED.
Entretanto, o Chefe do Estado-Maior General das Forças de Armadas de Defesa de Moçambique (FADM), Joaquim Mangrasse, reuniu-se com o Comandante das Forças de Segurança do Ruanda, Emmy Ruvusha, no dia 27 de setembro em Cabo Delgado, num encontro destinado a rever os esforços militares contra a Insurgência na região. Também no dia 25 de setembro, no âmbito das comemorações do 60.º aniversário das FADM, Mangrasse reuniu-se em Maputo com o Chefe das Forças Armadas da Tanzânia, Jacob Mkunda para discutir a cooperação na área da segurança. A Tanzânia ainda opera com uma unidade militar contra a Insurgência no distrito de Nangade, em Cabo Delgado.
EXPRESSO(LX) - 08.10.2024