A “fuga para frente” por parte da Comissão Nacional de Eleições, com fundamento no fato de que o prazo legal de 15 dias vencia a 24 de Outubro de 2024, não procede, uma vez a lei permitir a extensão dos prazos procedimentais, caso seja necessário realizar diligências essenciais para sanar e/ou resolver o fundo da questão (irregularidades), como é o caso.
Resulta da alínea a), n.º 1, do artigo 42 do Estatuto da Ordem dos Advogados de Moçambique (EOAM), aprovado pela Lei n.º 28/2009, de 28 de setembro, que “Compete ao Conselho Nacional: definir a posição da Ordem dos Advogados de Moçambique perante os órgãos de soberania e da administração pública no que se relaciona com a defesa do Estado Democrático de Direito, dos direitos, liberdades e garantias individuais e, com a administração da justiça”. Portanto, esse posicionamento tem amparo legal, sendo a Constituição o caminho da Ordem dos Advogados.
Como é de conhecimento geral, realizaram-se, no passado dia 9 de Outubro de 2024, as eleições gerais para Presidente da República, para os membros da Assembleia da República e para as Assembleias Provinciais. A Ordem dos Advogados de Moçambique, no quadro das suas atribuições estatutárias de defesa do Estado de Direito Democrático, observou o processo eleitoral e constatou diversas irregularidades nos editais afixados e os números parciais de votação divulgados quer pelas Comissões Distritais de Eleições, quer pelas Comissões Provinciais de Eleições, o que não favorecia uma eleição transparente, em obediência às regras da democracia pelas quais os eleitores votaram, numa manifestação de dimensão política plena.
Por isso, no dia 18 de Outubro de 2024 a Ordem dos Advogados de Moçambique manifestou-se publicamente, por via de um Comunicado de Imprensa, em que aludiu que para “(…) que seja afastado todo o manto de opacidade até aqui observado pelos concorrentes, observadores eleitorais e jornalistas, se fazia mister a publicação de todas as actas, sem excepção, de apuramento e editais por locais de votação (na mesa, parcial, intermédio e geral), para a garantia de total transparência e isenção que deve caracterizar um processo eleitoral, pois só assim se poderia salvaguardar a credibilidade e transparência de todo o processo eleitoral.
Ocorre que no dia 24 de outubro de 2024, mesmo com as irregularidades suscitadas, a Comissão Nacional de Eleições avançou com a divulgação da Ata de Centralização Nacional e do Apuração Geral dos Resultados das Eleições de 9 de outubro de 2024, tendo observado, dentre outros, que:
“No dia vinte e dois de Outubro de dois mil e vinte e quatro, no âmbito da preparação da Assembleia de Centralização Nacional e Apuramento Geral dos resultados eleitorais, a Comissão Nacional de Eleições reunida constatou uma discrepância de números de votantes entre as diferentes eleições, alto índice de abstenções em todos os círculos eleitorais e alto índice dos votos em branco e nulos.
Diante dessas constatações, levantou-se um debate em torno da discrepância que se verifica em relação ao número de eleitores para cada uma das eleições para Presidente da República, Assembleia da República e Assembleias Provinciais, para entender as reais causas das discrepâncias e tomada de decisão pela Justiça Eleitoral.
O debate em relação a essa questão das discrepâncias dos números foi muito acalorado, tendo ficado assente que nessa fase em que o processo se encontra para o anúncio dos resultados, a Justiça Eleitoral não teria condições objetivas de realizar ações investigativas para aferir o que realmente teria acontecido. Cabe ressaltar que não há nenhum relato em relação a essas ocorrências nas atas da apuração e da centralização provincial que o Órgão recebeu (…)”.
Ou seja, mesmo com as irregularidades apontadas pela própria Comissão Nacional de Eleições (discrepância de números de votantes entre as diferentes eleições, alto índice de abstenções em todos os círculos eleitorais e alto índice dos votos em branco e nulos), que retiram credibilidade e transparência ao processo eleitoral em crise, os resultados do apuramento geral foram divulgados com a alegação de que “(…) nesta fase em que o processo se encontra para o anúncio dos resultados, a Comissão Nacional de Eleições não teria condições objectivas para levar a cabo acções investigativas para aferir o que realmente teria acontecido (…)”, quando se sabe e não pode ser ignorado que cabe à mesma (Comissão Nacional de Eleições) investigar e garantir a justiça e transparência do processo eleitoral, tendo as suas deliberações carácter vinculativo, por isso mesmo, susceptíveis de recurso para o Conselho Constitucional.
A “fuga para frente” por parte da Comissão Nacional de Eleições, com fundamento no fato de que o prazo legal de 15 dias vencia a 24 de Outubro de 2024, não procede, uma vez a lei permitir a extensão dos prazos procedimentais, caso seja necessário realizar diligências essenciais para sanar e/ou resolver o fundo da questão (irregularidades), como é o caso. Especificamente, a norma do parágrafo 3º do artigo 92 da Lei nº 14/2011, de 10 de agosto – que regula a formação da vontade da Administração Pública, estabelece as normas de defesa dos direitos e interesses dos particulares e revoga a Reforma Administrativa Ultramarina e Decreto-Lei nº 23.229, de 15 de novembro de 1933 – determina que não se inclui na contagem dos prazos o tempo necessário para a realização de diligências necessárias à prática do acto.
Mostra-se, pois, de índole muito grave que uma entidade pública com tamanha responsabilidade, neste caso, a Comissão Nacional de Eleições, opte por ignorar problemas sérios, fundamentais e determinantes, como sejam aqueles atinentes ao apuramento da vontade manifestada pelo povo – através do VOTO, com recurso a uma alegada inflexibilidade dos prazos legais, deixando tão importante matéria por esclarecer e corrigir, quando se está em presença de vícios graves que o próprio órgão reconhece (discrepância de números) e que se não pode curar através disso.
Quanto, em particular, aos ilícitos eleitorais, não pode e nem deve a Comissão Nacional de Eleições alegar, despudoradamente, que tomou conhecimento da ocorrência dos mesmos através dos órgãos de comunicação social, alguns dos quais já correm trâmites nos Tribunais Judiciais de Distrito e de Cidade, pois é da sua responsabilidade investigar todas estas irregularidades ocorridas no processo eleitoral. O prazo para a divulgação dos resultados não pode, conforme já explanado acima, justificar o escamotear da verdade eleitoral. A Comissão Nacional de Eleições não estava, como não está, legalmente obrigada a divulgar resultados, mesmo que estes não sejam credíveis. Nenhum interesse deve prevalecer que não a verdade eleitoral, ou seja, a vontade suprema dos eleitores.
Outrossim, em caso de manifestas irregularidades, que comprometem a justiça e a transparência eleitoral, a Comissão Nacional de Eleições poderia, como pode, entender que os resultados não são confiáveis e credíveis, devendo, neste caso, não declarar os resultados (as suas decisões são vinculativas às pessoas físicas e jurídicas), cabendo aos interessados recorrer dessa decisão aos órgãos competentes, neste caso o Conselho Constitucional. Portanto, havia outros caminhos legalmente possíveis, mais transparentes e mais seguros. Não se pode vedar os olhos quando a injustiça é patente e compromete a paz social. A justiça e a paz são os fundamentos para o sucesso de um Estado. Não há dúvidas sobre isto.
Toda esta falta de transparência dos órgãos de gestão eleitoral e dos seus órgãos de apoio (neste caso a Comissão Nacional de Eleições e o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral, mais as suas representações nas cidades, distritos e províncias) tem provocado ondas de protesto com manifestações reprimidas de forma profundamente violenta pela polícia. Estas manifestações iniciaram-se mesmo antes da divulgação dos resultados gerais pela Comissão Nacional de Eleições e mesmo, sem antes, o Conselho Constitucional sufragar os resultados, tudo porque estas duas instituições não gozam de qualquer credibilidade no seio da sociedade moçambicana, o que é muito grave numa democracia, quando não se acredita nas suas instituições republicanas. É pacífico que Moçambique não enfrenta uma instabilidade constitucional, apenas, os interesses políticos é que controlam a justiça eleitoral o que se manifesta pela composição da Comissão Nacional de Eleições, e distorce tudo quanto é a dinâmica própria de uma democracia plural e de um Estado de Direito.
É tempo da jurisdição constitucional se auto afirmar, lembrando sempre que o fruto da justiça é a paz. Temos de aceitar que os tempos mudaram. Nas eleições passadas, todas elas, terminaram com conflitos armados. Hoje o paradigma é outro: é a população no geral que reivindica transparência e credibilidade dos resultados eleitorais e é a Polícia que reprime violentamente, violando, inclusivamente, direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, com destaque para o direito à vida. Estas eleições ultrapassaram grupos étnicos e o regionalismo, estando em causa apenas e somente o interesse nacional.
Não podemos permitir um banho de sangue em nossa sociedade e os sinais apontam para essa direção e final. Se permitirmos estaremos falhando como Estado, como democracia, como povo, apenas para acomodar interesses desconhecidos. As saídas para as crises eleitorais em nosso país devem deixar de ser negociais e passar a ser por via constitucional. Foram retiradas aos Tribunais Judiciais de Distrito, contra as nossas recomendações manifestadas perante o poder legislativo, as competência para conhecerem das “… irregularidades que se suscitem no decurso da votação e no apuramento parcial, distrital ou de cidade …” e posteriormente a proposta de alteração legislativa que permitia a esses tribunais as competências para mandar proceder à recontagem e o resultado está a vista, não há nenhuma válvula de escape, que permita qualquer confiança no processo eleitoral.
Por tudo isto, torna-se incontornável que a Ordem dos Advogados de Moçambique tome uma posição sobre o desenrolar deste processo eleitoral e os caminhos a seguir para a salvaguarda da justiça eleitoral. Assim, e perante o cenário descrito, entendemos que não há outro caminho ao Conselho Constitucional que não seja:
Devolver a Ata de Centralização Nacional e do Apuramento Geral dos Resultados à Comissão Nacional de Eleições, instruindo-a a investigar e esclarecer, dentro de um certo período, os problemas de fundo que ela própria reconhece existirem, com destaque para a discrepância de números ;
Uma vez recebido, da Comissão Nacional de Eleições, o relatório da investigação a que fazemos menção acima, o Conselho Constitucional deve iniciar o processo de análise e discussão global do processo, desta vez em sessão pública, que possa contar, pelo menos, com a presença dos mandatários dos candidatos presidenciais e dos partidos políticos, além da comunicação social e de observadores nacionais e internacionais;
Concomitantemente, mandar publicar todos os editais produzidos em todas as mesas de votação em âmbito nacional;
Se não for possível fazer o acima, mandar proceder à recontagem dos votos ao nível nacional e afixarem-se os respectivos editais.
Do contrário, devem assumir todas as responsabilidades que decorrem da instabilidade social, derivada desse processo eleitoral. A responsabilidade do Conselho Constitucional nunca se fez tão pesada como é HOJE . Estaremos aqui para o que for necessário, pois temos a coragem e a vontade. (Posicionamento da Ordem dos Advogados de Moçambique sobre o Apuramento Geral dos Resultados pela Comissão Nacional de Eleições)
Maputo, 28 de Outubro de 2024.
INTEGRITY – 28.10.2024