Há muita gente, por esses dias, que anda a criticar os desgraçados jovens do meu país que, armados de cartazes, enchem as ruas. Falo de jovens que nasceram e cresceram em bairros pobres como eu. Jovens que são assassinados nas ruas clamando por mudanças. Esses jovens são chamados nomes por gente que quando era jovem tive tudo: saúde em clínicas, educação em colégios privados no estrangeiro e até herança.
E tudo isso me trouxe à lembrança parte da minha meninice passada em Homoíne, terra do meu pai. Em Homoíne, havia dois tipos brutos que eram especialistas em matar bois. Eram solicitados, surgiam enfarpelados de instrumentos, faziam pequenas análises da bravura do boi e em poucos segundos surgiam com as camisas bordadas de sangue e com os chifres nas mãos. E eu, nascido e crescido na grande cidade, ficava com o queixo rente à mão de espanto.
O trabalho desses dois tipos era pago por um molho de tripas e um enorme galão de aguardente. E eles, depois de bêbados, exibiam os seus dentes amarelos, cambaleavam e arrastavam as tripas pingando cuspos de sangue. Há vezes que, de forma pobre, até se humilhavam, cantavam hinos de pobreza só para ter a língua do animal.
Esses dois tipos eram também solicitados quando um boi morresse. Surgiam com pás e cordas, faziam a cova, enfiavam o animal e às cambalhotas corriam para o pagamento: um copo de chá. A forma de pagamento era diferente, claro. Eles explodiam de horror quando soubessem que morreu um boi na casa dos meus tios, sabiam que não teriam tripas.
E eu acho que há tanta gente, em Moçambique, com medo de assistir à morte do grande boi por doente. Gente que sabe que poderá sair sem tripas, porque tudo será enterrado. Gente que também tem receio de matar o boi, porque sabe que só ficará um simples embrulho de tripas.
Gente que prefere ver o boi ali vivo, porque sabe que, de tempos a tempos, consegue uns decilitros do leite desse boi. Gente que, se calhar, quer ver o boi a crescer, a somar gorduras e a ganhar tripas bem oleosas. Gente que procurará todos os veterinários do mundo só para manter o boi vivo. Eles não me surpreendem...