Enigma com mais de 100 anos foi finalmente esclarecido, depois de uma equipa de historiadores açorianos ter localizado documentação que comprova o local exato onde Gungunhana foi enterrado em 1906.
Depois de mais de um século de dúvidas e impasses diplomáticos, foi finalmente identificado o local onde foi sepultado Gungunhana, o último imperador de Gaza.
É uma informação inédita, que inclui também os túmulos dos seus companheiros de exílio — Godide, Zixaxa e Molungo —, e traz uma nova luz sobre um dos episódios mais enigmáticos e marcantes da história de Portugal e Moçambique.
A informação foi agora divulgada pela CNN Portugal no podcast “Gungunhana. Quando Portugal Raptou um Rei”.
Gungunhana, o último imperador de Gaza, é um dos símbolos da resistência africana ao colonialismo português. O “Leão de Gaza”, capturado em 1895 em Moçambique por Mouzinho de Albuquerque, morreu no exílio em 1906, mas o local do seu túmulo permaneceu envolto em mistério até agora.
O achado foi localizado por uma equipa de historiadores açorianos e confirmado pelo Instituto Histórico da Ilha Terceira (IHIT). “Esta é uma descoberta relevante para um capítulo importante da história portuguesa”, diz o presidente do IHIT, José Olívio Rocha.
A informação faz parte do espólio de Manuel Coelho Baptista de Lima, um historiador de referência nos Açores no século XX e pioneiro na organização da biblioteca, arquivo e museu da Angra do Heroísmo.
Uma carta esquecida num arquivo revela o local
“A carta é de 1942 e Batista Lima enumera não só as datas e os locais exatos em que eles tinham falecido mas também as sepulturas em que eles tinham sido sepultados”, detalha José Olívio Rocha.
De acordo com o documento, Gungunhana morreu a 23 de dezembro de 1906 e foi enterrado no dia seguinte na sepultura n.º 404, 1º talhão do cemitério da Conceição de Angra do Heroísmo.
A mesma fonte revela que Godide, filho de Gungunhana, também desterrado na ilha Terceira, morreu a 31 de julho de 1911, sendo enterrado a 1 de agosto na sepultura n.º 148, 1º talhão. Seguiu-se a morte de Molungo a 6 de outubro de 1912, enterrado na sepultura n.º 387, 1º talhão e de Zixaxa a 12 de novembro de 1927, que acabou sepultado na campa n.º 73, 4º talhão.
Restos mortais irrecuperáveis
Durante muito tempo acreditou-se que Gungunhana e os companheiros de exílio tinham sido enterrados em valas comuns, mas este achado vem revelar que cada um foi sepultado em campas rasas.
Apesar de conhecida a localização da sepultura, os restos mortais de Gungunhana são irrecuperáveis, uma vez que as campas rasas pressupõem uma renovação cíclica.
“De acordo com as regras de higiene e de funcionamento dos cemitérios, de sete em sete anos há uma renovação das pessoas que estão enterradas na campa”, explica o historiador José Olívio Rocha, acrescentando que, ao retirarem as ossadas, as autoridades não salvaguardaram a preservação dos restos mortais de Gungunhana.
O presidente da Câmara de Angra do Heroísmo, Álamo Meneses, afirma que estes achados “vêm pôr silêncio numa discussão que já vinha desde há quase um século” sobre quais as sepulturas onde tinham sido inumadas os quatro desterrados.
A autarquia instalou uma placa evocativa no cemitério da Conceição como homenagem aos desterrados.
“O tempo foi passando e todos nós acabámos por nos misturar uns com os outros. De facto, são as areias de nós todos porque acabámos neste lugar por nos fundir todos naquilo que, no fim de contas, somos, que é parte deste planeta e desta terra”, afirmou o autarca durante a cerimónia de descerramento da placa.
Devolução dos restos mortais
Depois da morte de Gungunhana, o imperador caiu no esquecimento mas foi recuperado por Samora Machel quando assumiu a liderança da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e a presidência de Moçambique.
Em 1983, antes de uma visita oficial a Portugal, Samora Machel pediu a devolução dos ossos do rei de Gaza. Portugal e Moçambique esforçavam-se por reatar as relações depois de dez anos de guerra colonial.
“Estava na hora da reaproximação entre Moçambique e Portugal. Do outro lado, a nível interno, Moçambique estava completamente dilacerado pela guerra civil. Era uma altura extremamente complicada. Então, criar uma cerimónia deste tipo podia servir ao poder para se legitimar”, explica o historiador Andrea Vacha.
Ramalho Eanes entregou ao presidente moçambicano um pote de cerâmica contendo aquilo que seriam as cinzas das ossadas Gungunhana. Samora Machel seguia a visita pela Europa e, por isso, pediu que Portugal conservasse os restos mortais de Gungunhana, de forma que Moçambique pudesse preparar uma cerimónia de transladação.
Quase dois anos depois, a 14 de junho de 1985, Samora Machel regressa a Lisboa e ao lado do presidente Ramalho Eanes assistiu a uma cerimónia solene, ao lado do então presidente do Governo Regional dos Açores Mota Amaral, bem como oficiais da Marinha e do Exército portugueses.
Quando Samora aterra em Maputo com a urna preparada para as ossadas é recebido por centenas de pessoas, num cortejo que percorre várias avenidas da capital moçambicana.
Desconforto diplomático
O escritor Mia Couto, que em 1985 era diretor do jornal moçambicano "Domingo", lembra que as dúvidas sobre o conteúdo da urna começaram a surgir de imediato.
“A equipa de reportagem trouxe fotografias várias e tinha uma fotografia da urna e a urna era coisa monumental, esculpida em baixo-relevo, numa madeira preciosa que se chama 'jambire', uma coisa enorme mas tão enorme, não tinha nada dentro. Ou se tinha, tinha areias. O próprio fotógrafo disse: 'bom, restos mortais, é só areia'. Ainda por cima areia que não é nossa, que vem de fora”, disse no primeiro colóquio internacional dedicado à figura de Gungunhana.
Os jornais portugueses e açorianos acabaram por revelar que os supostos restos mortais de Gungunhana eram afinal terra do cemitério da Conceição em Angra do Heroísmo. Tratava-se de entrega simbólica, uma vez que não se conhecia a localização das ossadas do Leão de Gaza.
A notícia caiu mal em Moçambique, mas só mais tarde, em 1998, o governo moçambicano anuncia a criação de uma comissão de inquérito para apurar a autenticidade das ossadas. Mas mais de cinco anos depois, a revista "Grande Reportagem" revelava que a comissão de inquérito não tinha apresentado ainda quaisquer resultados. E, desde então, nunca mais houve notícias do caso.
Até agora.
CNN(LX) – 21.12.2024