Michael Hagedorn
Portugal e a União Europeia, que há décadas vêm pactuando com o governo autocrático da FRELIMO, continuam a colocar-se do seu lado e não do lado do povo moçambicano
Estão a decorrer em Maputo os preparativos para que, no próximo dia 15 de Janeiro, Daniel Chapo tome posse como futuro Presidente de Moçambique. Para a cerimónia esperam-se 2.500 visitantes e foi decretado o mais alto nível de segurança a fim de que a tomada de posse não seja perturbada por manifestações.
No recente acto eleitoral, marcado por irregularidades e falsificações, Daniel Chapo, o candidato da FRELIMO, no poder desde a independência, foi declarado vencedor com 65% dos votos. Venâncio Mondlane, candidato da oposição, teria obtido 24% dos votos.
No entanto, desde que os resultados das eleições foram anunciados em Outubro passado, a situação em Moçambique continua tensa, com protestos por todo o país, aos quais a polícia reage atacando violentamente os manifestantes com gás lacrimogéneo e balas reais. Mais de 300 pessoas foram mortas a tiro, milhares ficaram feridas e foram detidas.
Desta vez, a elite corrupta da FRELIMO, que há anos enriquece usando para tal os recursos do país e ignorando as necessidades da grande maioria da população, foi longe demais.
Durante muito tempo, as eleições em Moçambique pareciam decorrer de forma democrática, livre e justa, acreditando-se que as pessoas podiam de facto, mudar o governo através do seu voto. No entanto, uma análise efectuada pela ONG Centro de Integridade Pública mostra que já em anteriores eleições a fraude era óbvia e a FRELIMO decidia quem iria ganhar.
Os actuais protestos não resultam, como muitas vezes se diz, apenas de uma crise pós-eleitoral. Já em Março de 2023, quando a polícia atacou com “inédita brutalidade” os jovens que homenageavam o músico moçambicano Azagaia, ressoou nas ruas o slogan “O povo no poder”. No final de 2023, aquando das fraudulentas eleições autárquicas, o povo moçambicano sentiu-se novamente enganado. Era previsível que uma nova fraude nestas eleições presidenciais, levasse a protestos massivos.
O resultado destas eleições presidenciais está a ser questionado por todos os partidos da oposição e até por observadores internacionais. Contagens paralelas provam que o candidato da oposição, Venâncio Mondlane, ganhou efectivamente as eleições. Razão pela qual Mondlane, após o anúncio dos resultados eleitorais, apelou a protestos pacíficos e conseguiu mobilizar um protesto alargado sem precedentes na história de Moçambique. Temendo pela sua vida após a reacção violenta da polícia, abandonou temporariamente o país, tendo regressado a Moçambique no dia 9 de Janeiro. Foi recebido por uma enorme multidão de apoiantes, mas a polícia voltou a atacar violentamente os participantes e matou três pessoas.
Venâncio Mondlane voltou a apelar a uma greve geral e a protestos pacíficos até à tomada de posse do novo Presidente da FRELIMO.
O que irá acontecer em Moçambique no próximo dia 15 de Janeiro e posteriormente?
Sabe-se que um processo semelhante está actualmente a decorrer na Venezuela. Nikolas Maduro celebrou a sua tomada de posse como Presidente no dia 10 de Janeiro. A oposição acusa Maduro de fraude eleitoral e insiste que o seu candidato, Edmundo González Urrutia, é o verdadeiro vencedor das eleições. Tal como Mondlane em Moçambique, também ele teve de fugir para o estrangeiro por temer pela sua vida.
A oposição venezuelana não se deixa intimidar pelas acções violentas das forças de segurança, fala em golpe de Estado e não reconhece a reeleição de Maduro, no que é secundada pelos EUA e a UE. Juntamente com o governo britânico, está até mesmo a ser considerada a imposição de sanções.
Porém, a posição da UE relativamente a Moçambique é muito diferente da que assume em relação à Venezuela.
Na sequência da correção oficial dos resultados eleitorais pelo Tribunal Constitucional em 23 de Dezembro, vários países ocidentais, incluindo a UE e Portugal em particular, reconheceram Daniel Chapo como presidente eleito e felicitaram-no pela sua eleição.
Estas declarações foram fortemente criticadas pela oposição e pela sociedade civil moçambicanas. Por exemplo, Edson Cortez, director executivo do Centro de Integridade Pública (CIP), uma das mais importantes ONG moçambicanas, afirmou não entender como o primeiro-ministro, Luís Montenegro, e o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, consideram a FRELIMO e Chapo como os “vencedores legítimos” das eleições moçambicanas e se mostram “dispostos a colaborar” com “um regime que mata cidadãos”.
Já anteriormente as declarações da UE e de Portugal sobre os brutais assassinatos perpetrados pelas forças de segurança tinham sido extremamente cautelosas e diplomáticas para não antagonizar o governo da FRELIMO. A óbvia captura do Estado por parte da elite da FRELIMO foi aceite de forma conivente, para evitar colocar em risco os interesses da própria UE.
A missão de treino militar das forças armadas moçambicanas, liderada por Portugal e generosamente financiada pela UE, é o exemplo mais óbvio da falta de uma resposta adequada. A imagem narcisista da EUMAM em brochuras e nas redes sociais mostra como esta missão está longe da realidade em Moçambique. Enquanto centenas de pessoas morriam devido às balas da polícia nas ruas de Maputo, a EUMAM publicava no seu sítio Web decorações de Natal, atribuía medalhas e celebrava os feriados nacionais das nações participantes na missão. A ideia de apostar na formação individual num exército que é estruturalmente corrupto e ineficaz está condenada ao fracasso. E o povo de Cabo Delgado em nada beneficiou dos 89 milhões de dólares que esta missão custou até agora.
Por outras palavras, muito se gastou para nada. O mandato da missão tem de ser urgentemente reavaliado pelo Tribunal de Contas Europeu.
É de notar que a política de “carinho diplomático” seguida até à data por Portugal e pela UE junto do governo da FRELIMO não levou a uma melhoria da situação da maioria da população moçambicana. Apesar da sua riqueza em recursos agrícolas e minerais, Moçambique continua a ser um dos 10 países mais pobres do mundo.
No passado dia 10 de Janeiro, o Parlamento português aprovou várias resoluções sobre a situação em Moçambique.
O projecto de resolução da Iniciativa Liberal (IL) apelava a que o Governo não reconhecesse os resultados das eleições gerais de Moçambique e foi aprovado com o voto contra do PCP, a abstenção do PS, PSD e CDS-PP e os votos favoráveis do Chega, IL, Bloco de Esquerda (BE) e LIVRE. Anteriormente, Rui Rocha já tinha acusado o governo português, numa declaração aqui no jornal Público, de ter estado do lado da autocracia em Moçambique ao reconhecer a vitória de Daniel Chapo.
Não é por acaso que a IL é o único partido que se manifestou em favor de Venâncio Mondlane. Como populista e defensor de um modelo económico neoliberal, Mondlane seria um parceiro preferencial para as futuras relações de Portugal com Moçambique, sob a perspectiva da IL.
É também sintomático que outros partidos tenham estado relutantes em tomar uma posição: o PS, devido às suas antigas ligações, o BE provavelmente não quererá ser associado a Mondlane e do PCP não se espera outra coisa, dada a sua lealdade ao governo da FRELIMO.
Entretanto, a sociedade civil moçambicana e as organizações internacionais de defesa dos direitos humanos estão a pressionar cada vez mais a UE e Portugal para que tomem uma posição cautelosa (o CIP e a “Plataforma Decide” pedem a intervenção das Nações Unidas e do Conselho da Europa para evitar uma escalada de violência).
Essa pressão terá levado a dúvidas sobre a presença de Marcelo Rebelo de Sousa na tomada de posse de Daniel Chapo. Marcelo, que sempre se considerou um grande amigo e irmão de Moçambique, não perdendo uma oportunidade de elogiar o anterior governo de Maputo (“Moçambique está cada vez melhor”), tem-se mostrado visivelmente reticente e remeteu a decisão para o governo. Está agora prevista a presença do ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel.
Resta saber se a situação se manterá calma em Moçambique até à tomada de posse de Chapo e, sobretudo, depois dela. A polícia moçambicana anunciou que tem tudo sob controlo.
No entanto, tal como escreve um colunista do jornal moçambicano Integridade, o governo de Maputo e os seus apoiantes não deveriam subestimar a ira do povo que vem sendo oprimido durante décadas:
“O regime, aquele que abusa do poder para calar as vozes dissonantes, está prestes a sentir o peso da verdade. E que verdade é essa? A verdade dos assassinatos, das mortes a sangue-frio, das perseguições implacáveis de quem ousou levantar a voz. A verdade das valas comuns, onde caem os corpos de quem foi silenciado, de quem foi apagado da história pelos tentáculos da polícia e das forças de segurança. Essas mãos que, ao invés de proteger, enterram vivos os sonhos de um povo.”
O silêncio da comunidade internacional e a atitude de Portugal e da UE durante os últimos anos são vergonhosos. Revelam, mais uma vez, a grande hipocrisia, sobretudo quando se compara Moçambique com a Venezuela e se percebe a dualidade de critérios que aqui se está a aplicar.
Quem sofre é o povo moçambicano, que, aparentemente, está agora decidido a tomar o seu destino nas suas próprias mãos.