Eu dizia há algum tempo em conversas que não faz sentido celebrar o que Unay Cambuma publicou, pois amanhã poderíamos ser nós ali.
Hoje, um jovem foi apresentado como o suposto administrador da página do Unay Cambuma. Mal conseguia andar ou falar, visivelmente fragilizado. Mas o que deveria gerar indignação se transformou num espetáculo. Os jornalistas não viram um cidadão em estado crítico – viram apenas uma história pronta para ser explorada.
“Levanta a cabeça!” – exigiam, enquanto ele se contorcia de dor. Que tipo de jornalismo é esse, que não questiona o que aconteceu antes da apresentação do suspeito, mas apenas quer arrancar uma declaração para confirmar a versão oficial?
A cena foi brutal. Pelas imagens, percebe-se que este jovem sofreu violência – física, psicológica e, possivelmente, até s….. Mas, em vez de questionarmos o que lhe aconteceu, discutimos apenas a culpa que já lhe foi imposta.
E isso não é novo. O jornalismo moçambicano nunca respeitou a presunção de inocência. Mas, sejamos justos: o próprio debate público também nunca respeitou. Quando Unay Cambuma exibia pessoas, expunha mães, filhos (tais flores que nunca murcham) e divulgava endereços de supostas amantes, muitos aplaudiam e prometiam uma visita. Era entretenimento. O linchamento virtual servia aos que queriam vingança, sem necessidade de provas ou contraponto. Agora que a polícia adopta a mesma lógica, já não há o mesmo entusiasmo. Porque desta vez o alvo mudou.
Mas este não é um problema apenas da polícia ou do Unay Cambuma. É um problema nosso. Estamos presos a um ciclo de exposição e vingança, onde ninguém quer justiça – apenas quer ver alguém no lugar da vítima da vez, sobretudo quando essa pessoa é um Egidio Vaz ou Alfazema da vida.
Se este jovem for culpado, que seja julgado com provas. Se for inocente, estamos a assistir a mais um erro irreparável.
O mais preocupante? O país que estamos a construir não faz essa distinção. Aqui, a culpa não precisa ser provada – basta ser decretada. E o jornalismo, em vez de questionar, apenas carimba a sentença. Hoje é ele. Amanhã pode ser qualquer um de nós.
Há um papel que o jornalismo deve desempenhar: defender acima de tudo o direito à vida e ao tratamento justo. Não se trata apenas de relatar factos, mas de garantir que a informação não se transforme numa ferramenta de linchamento. Ninguém deve celebrar a morte ou a humilhação de alguém, seja um membro da Frelimo, do MDM, do Podemos ou da Renamo, seja um agente da UIR ou a filha de um Presidente. Ainda que isso possa ser considerado humano em momentos de raiva ou frustração, está nas antípodas da dignidade e dos valores que deveriam sustentar uma sociedade justa.
Mais do que expor, o jornalismo deveria questionar. Questionar a integridade dos processos, as condições dos detidos, a validade das acusações e o papel do próprio Estado na garantia da justiça. Mas, infelizmente, muitas vezes, limita-se a ser um megafone do poder, a repetir acusações sem investigar e a amplificar humilhações sem reflectir sobre as suas consequências.
Seja qual for o crime cometido, o direito à dignidade nunca pode ser descartado. Porque quando aceitarmos que a humilhação é uma forma legítima de justiça, estaremos apenas a preparar o caminho para que amanhã sejamos nós os próximos a cair.
Rui Miguel Lamarques