Por: Jorge Ferrão
A ilha dos espíritos celebrou o 202º aniversário. Clausurada, sem alaridos e nem hosanas. Uma comemoração, quase, esquecida e melancólica, com silêncios ensurdecedores, sem espaços e recantos engalanados.
O maior convidado foi, apenas, o tempo. Esse tempo infinito que contempla, estarrecido, noites e luares misteriosos, auroras endiabradas, crepúsculos de mil cores e, os ventos que acenam mudanças políticas e climáticas. Faltou tufo e fraternidade insular. Até o sol, enfraquecido, foi insuficiente para recriar o cruzamento milenar de sabores e sons. A torre de São Miguel não parecia, nem de longe e muito menos de perto, o espaço de maior dimensão multicultural da costa moçambicana.
Na ausência de festividades, até os toques culinários do sirissiri e do lumino, viraram insossos. Nesta celebração carente, faltaram, curioso, até os políticos e suas ocas veleidades. Dois anos antes, eles quase afundaram a ilha porque era conveniente comemorar. Imaginei como seria o diálogo, por estes dias, com a Dona Lili. O que será que ela diria sobre esta efeméride e sobre a ilha de Moçambique?
Falaríamos sobre a terra de Moisés, filho de Mbiki, ou Mussa Bin Bique, tantos outros assuntos curriculares e marginais, que dão alento a alma e ao espírito Nharsa. A dona Lili, do clã Tivane, faz parte de um grupo de escritoras de cartas. Um grupo que já foi expressivo. Agora agoniza. Os escritores de cartas têm a mesma origem, amor pelo próximo.
Começam como um hobby e, depois, ganham gosto. É o analfabetismo das maiorias que valoriza o conhecimento, as habilidades dos dedos e da tinta. Escritores de cartas, salvo raras excepções, são confidentes muito especiais e de extrema confiança.
Pessoas que escutam com ouvidos de padres e espírito confessionário. Depois de discutidos os contextos e passadas as confissões, estas jamais são reveladas para quem quer que seja. Espécie de cofre-forte. Estes escritores, preferencialmente, mulheres, transcrevem para o papel centenas de segredos, as novidades familiares, rabiscam as alegrias e os nascimentos dos novos membros, descrevem, enfim, as novas cabeças do rebanho que engrandecem as fortunas, falam das colheitas, pragas e enfermidades.
Mas, estas cartas suavizam, também, as tristezas da dor e do luto dos vizinhos e membros da aldeia. As cartas não representavam, apenas, uma ligação mecânica entre quem quer transmitir episódios e factos, pois, transportam e estabelecem uma relação de fraternidade confidencial entre os correspondidos e seus entes distanciados.
Dona Lili, minha escritora favorita de cartas, lá das bandas de Chicumbane, desde o longínquo Maio de 1933, escreveu milhares de cartas. Perdeu a conta e as memórias. Não sabe qual delas foi a melhor ou a menos inconveniente. Até para os desterrados na Ilha escreveu.
Por isso, eu queria mesmo saber que carta ela escreveria, por esta ocasião dos 202 anos. Imagino a Dona Lili escondida no argumento de que os primeiros correios de Moçambique foram estabelecidos na ilha, em 1811, depois do Sultão de Zanzibar ter perdido o controlo sobre o local.
Não poderia ser diferente, pois, esta foi a primeira grande cidade moçambicana. Para a ilha e da ilha, esse histórico espaço de confluências culturais, deu aso a centenas de milhares de cartas. Umas para destinos mais próximos, outras, para lá das linhas do horizonte.
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