Entrevista - Mariza
Começou o ano com uma tournée pela Austrália e um Disco de Ouro na Holanda. Mesmo assim, Mariza ainda não usa a palavra sucesso para explicar o que lhe está a acontecer. De passagem por Lisboa, antes de partir em digressão por Espanha e França, a fadista revela que no mundo do fado há muita maldade e confessa que apesar de já ter posto a hipótese de viver no estrangeiro não consegue deixar Lisboa.
Correio da Manhã – O que é que o sucesso mudou em si?
Mariza – Eu não consigo olhar para mim como um sucesso. É incrível! Sei que consegui dar passos muito bons, muito inteligentes – também porque tenho uma equipa e tenho o João Pedro, o meu ‘manager’, que é o meu alicerce, a pessoa que me apoia. Agora, sucesso não consigo perceber perfeitamente o que é. Não me consigo olhar de forma diferente.
– Não acontece a muitos terem um percurso internacional como o seu: prémios internacionais, discos de ouro, concertos por todo o Mundo.
– E uma comenda...
– Isso é sucesso.
– É destino.
– O que é o sucesso, então?
– Talvez seja o que têm os U2.
– Não é sucesso o que já conseguiu?
– É uma palavra tão estranha!
– Ainda não está habituada a ela?
– Não. Ainda é incrível quando as pessoas vêm ter comigo e dizem: “Ai, o concerto foi maravilhoso, vi-a na Holanda” ou “vi-a em Paris”. Fico fascinada. O acto é egoísta. Porque o prazer que me dá estar em palco, cantar e transmitir os meus sentimentos é tão grande que acho que eu é que devia agradecer às pessoas por estarem ali, por tentarem perceber as minhas emoções.
– Não lhe acontece perante um prémio ou os aplausos dizer simplesmente: uau, consegui?
– Não. Acho que isso tem a ver com a alma portuguesa que carrego. Sinto-me portuguesa da cabeça aos pés. Tem a ver com a nossa melancolia. Enquanto não temos sonhamos
– Quando temos já não importa?
– Quando temos, a reacção é: ah, é isto? OK, já percebi!
– Só isso?
– Acontece-me muito.
– Não festeja esses triunfos?
– Eu não acredito nas coisas. Por exemplo, não acreditava que fosse possível receber uma comenda.
– Sente hoje uma responsabilidade maior do que há cinco anos, quando gravou o primeiro disco?
– Sinto, claro.
– Como é que ela se manifesta?
– Manifesta-se em querer, cada vez mais, fazer boa música, bons concertos, com cabeça, tronco e membros. Mostrar às pessoas que o fado não tem de ser feito em cima do joelho.
– Essa responsabilidade é só musical?
– Também tem a ver com a minha forma de estar. Sou incapaz de fazer as coisas do tipo: pega aí na viola e vamos lá. Eu sei que há pessoas que dizem que o fado não se ensaia
– E que não se aprende...
– Isso, não se aprende. Os mais velhos vão-nos passando a mensagem e nós conseguimos senti-la ou não. E depois, sabemos transmiti-la ou não. Fazer um concerto de fado, para mim, tem muito que se lhe diga.
– Há anos dizia: “Só me interessa cantar”. Ainda é assim?
– É. No dia em que deixar de sentir prazer não canto mais.
– Ainda se fica só pelos discos e pelo palco?
– Só.
– Mas a sua actividade pública já não é apenas artística: é embaixadora da UNICEF, tem participado em concertos de beneficência, está envolvida no projecto ‘Pobreza Zero’
– Isso é diferente. Eu sempre tive essa faceta. Antes de começar a cantar, o curso que estava a tirar era de assistente social. Em minha casa sempre houve esse lado. Vim de África em condições muito estranhas. A minha mãe sempre me incutiu a ideia da ajuda ao próximo. Não no sentido de vir a ter um lugar melhor no céu, mas pensando que posso dividir o que tenho com os outros ou chamar a atenção para o que está mal.
– Sente-se na obrigação de participar nesse tipo de iniciativas?
– Sinto. A UNICEF foi um dos melhores presentes que me deram. É um sonho tornado realidade.
– Tem obrigações públicas para além daquilo que faz em palco?
– Não sei se isto é público. Nós, como sociedade civil, somos pouco activos quando se fala em solidariedade. Não somos solidários. Nos últimos tempos, muito menos.
– Os portugueses ou o Mundo?
– Nós, Portugal. Vamos a outros países, como o Canadá, e a solidariedade funciona de forma completamente diferente. Vamos aos Estados Unidos e há pequenas cidades que se ajudam entre si, comunidades que vão aos mais carenciados
– A que atribui essa falta de solidariedade na sociedade portuguesa?
– Não fomos habituados a isso. Nunca fez parte da nossa educação. Esta nova geração começa a sentir isso. Às vezes, isto não tem nada a ver com dinheiro, às vezes é só o passar da palavra. As pessoas pensam: solidariedade? Abro uma conta, ponho lá 50 euros e já ajudei. Às vezes, não tem a ver com isso.
– Sente-se porta-voz de algo?
– Porta-voz, não. Mas sinto que faço parte de um projecto, como por exemplo o da UNICEF, que até 2015 quer mudar algumas coisas que estão mal no Mundo. É um dos objectivos da ‘Pobreza Zero’, de que o Bob Geldof e o Bono fazem parte e de que a UNICEF também faz parte, como as Nações Unidas. Com todos juntos, espero que se consiga algo. É muito difícil. É muita gente, são muitos problemas, há muita política, muitos interesses. É tudo muito complicado.
– Em que papel se vê?
– Como uma pessoa mais conhecida.
– Que tem sucesso.
– [Risos] A minha cara tornou-se conhecida. Posso chamar a atenção das pessoas para alguns problemas, e isso pode ser útil. Posso fazer uma campanha de solidariedade para medicamentos, para a ajuda da pesquisa da malária. Sei lá, tanta coisa!
– Vê-se um dia destes envolvida numa campanha eleitoral?
– Não, credo! Não.
– Porquê?
– Tenho as minhas ideologias políticas, obviamente. Mas isso é íntimo.
– Não partilha opiniões políticas?
– Não. Com ninguém. São minhas.
– Nem com os amigos?
– Não discuto política com os amigos. Pergunto o que é que acham do novo Presidente, o que é que acharam do Presidente que se vai embora, absorvo as opiniões, mas não comento. Fico só a tentar entender.
– Houve uma fadista, a Katia Guerreiro, em destaque na campanha presidencial...
– Eu não o faria. A minha música abrange pessoas de culturas diferentes, ideologias diferentes, religiões diferentes. Isso sim é uma política.
– Votou?
– Infelizmente, não. Não estava cá.
– Teve pena de não poder votar?
– Tive. Podia tê-lo feito no consulado, mas o meu calendário era tão apertado que foi impossível.
– Normalmente vota?
– Nunca cá estou. É incrível, não é? As pessoas vão dizer: que cidadã terrível! Mas sempre que há eleições nunca estou em Portugal.
– O que é que a faz andar permanentemente nessa roda-viva?
– O prazer. Só quem canta é que consegue perceber. É um prazer enorme subir a um palco. Eu tenho uma relação com o fado um bocado estranha, de paixão e ódio.
– Sente ódio pelo fado?
– Há dias que tenho paixão e ódio em cima do palco. Não quero mostrar o que sinto e ele obriga-me. E há dias em que estou tão apaixonada que canto só com amor.
– Prefere os dias em que o fado lhe arranca a sua verdade ou os dias em que se derrete e se entrega?
– Gosto dos dois. Mas o fado é como um namorado. Namora-nos todos os dias. Está ali, não sai. É uma tatuagem que a gente não consegue tirar. Eu tenho o fado marcado na memória, na pele, desde muito cedo. Entendemo-nos tão bem que há dias em que nos zangamos à séria.
– E, aí, o que acontece?
– Uma luta constante no palco.
– Acontece-lhe, nessa luta, ficar deprimida, triste, zangada?
– Triste. Zangada, não. Mas com vontade de lhe dizer que não o canto mais.
– Alguma vez pôs a hipótese de não cantar mais?
– Sim, muitas vezes.
– Porquê?
– Depois do ‘Fado em Mim’, quando cheguei ao ‘Fado Curvo’, tinha posto a hipótese de parar.
– Depois do primeiro disco?
– Não queria fazer mais discos. Aliás, as pessoas que conhecem o ‘Fado Curvo’ e que me conhecem um bocadinho, se prestarem atenção aos poemas que lá estão, percebem que são muitas as mensagens. É um disco de mensagens.
– Quis desistir porque lhe correu mal alguma coisa?
– Não. Achei que o esforço não era válido. Fiquei cansada das comparações. De ser a nova Amália. Fiquei triste com muitas coisas que vi.
– Com a crítica?
– Em Portugal, as críticas são estranhas. Ou se pertence a um certo lóbi e temos críticas boas, ou, se não pertencemos a lóbi nenhum, andam sempre a dar-nos tareia. Até conseguirmos provar que o trabalho que estamos a fazer é válido.
– Já conseguiu passar essa fase?
– Agora nem sequer estou preocupada com isso. Nem leio as críticas.
– Diz-se que o êxito dos portugueses tem de vir de fora para dentro. Passou-se isso consigo?
– Não. Eu não tinha discos e já fazia muitos concertos em Portugal. Já me conheciam. Já fazia programas de televisão. Houve foi pessoas que têm aquelas preferências dos tais lóbis de que a gente fala
– Fale-me um pouco deles.
– Toda a gente sabe Quem gosta do Bloco de Esquerda não pode gostar de não-sei-quê, quem gosta de não-sei-que-mais não pode gostar
– No fado?
– Em tudo. É mais que óbvio. Sou independente, não me meto em políticas. Não sou nem de esquerda nem de direita.
– Os lóbis na música também são políticos?
– Normalmente. Isso deixa-me um bocado triste, porque, às vezes, não é por pertencerem ao grupo A ou ao grupo B ou C que as pessoas são melhores ou piores. São boas ou não, independentemente da opção política.
– Qual foi a coisa que disseram a seu respeito que mais a magoou?
– Uma vez li que gritava tanto quanto a Dulce Pontes. Isso magoou-me.
– Pela comparação?
– Não. Magoou-me a parte de dizerem que eu gritava. A pessoa não percebeu, ou então era maldosa.
– Há maldade no fado?
– Oh, meu Deus!
– E já sabia isso quando começou?
– Não. Vim tão naïf para isto! Fiz o primeiro disco na esperança de o dar aos amigos e à família.
– Como descobriu essa maldade?
– Ai, é porque ela é forte. Fui começando a perceber que as pessoas, às vezes, dão-nos sorrisos e são simpáticas e por trás são completamente diferentes. Eu não sou assim. Sou tão sincera! Quando não gosto de uma pessoa, não faço fretes. Digo logo: não vou, não faço! Não estava à espera de encontrar tanta falsidade. As pessoas, no fado, fingem que são todas amigas e depois não são.
– E percebeu isso logo no início?
– Não! Por isso é que depois do ‘Fado em Mim’ estava a pensar fechar a mala e dizer: vão dar uma curva, que eu não preciso disto para nada.
– A comparação com a Amália
– Isso dói.
– Não a sente como um elogio?
– Sinto-a como um elogio. É um elogio maravilhoso. Dói-me porque estão a magoar a memória de Amália.
– É um presente envenenado?
– Pode ser.
– E tem sido?
– Às vezes. Quando querem, é um pau de dois bicos. Acho que se devia ter um pouco mais de respeito para com a memória de Amália. Cada vez que aparece alguém que cante fado é a nova Amália. Quantas novas Amálias vamos ter?
– Uma frase sua: “O público tanto dá como tira”. É uma ideia que costuma ter muito presente?
– Claro. Só estou aqui porque o público gosta.
– E o que é o público?
– Agora são os meus amigos, uma grande família. Já começo a reconhecer caras, a sentir familiaridade com os espaços. Houve um inglês que foi de Inglaterra a Sydney para ver os meus concertos.
– Isso deve ser uma enorme massagem para o ego.
– É supergratificante, nem imagina quanto! Ter alguém que faz não sei quantas horas de viagem para me ouvir cantar. A mim! Eu, uma portuguesa que vim de Maputo. É incrível! Adorava poder conhecer as pessoas todas, cumprimentá-las, olhá-las nos olhos, ver quem elas são, só que é impossível. É muita gente. Por isso, trato-as todas como amigos.
– Esforça-se por controlar o ego?
– Esforço. Há um ‘site’ de fãs e um ‘site’ oficial, os dois têm mensagens: se eu começar a ler as mensagens e não me controlar, o ego sobe de uma maneira que me tornaria uma pessoa detestável. Tenho um medo terrível de que isso me aconteça.
– Quando lê essas mensagens, qual é a sua reacção imediata?
– É respirar fundo e perceber que aquilo só aconteceu porque eu sou como sou. Porque continuo a ter os pés assentes na terra. Continuo a lembrar-me que os meus pais moram na Mouraria, numa casa modesta. Que o meu pai anda de mota e arranja frigoríficos, que a minha mãe é uma simples dona de casa. São pessoas modestas que me ensinaram a ser como sou. Então, o ego volta outra vez ao lugar normal: percebo que não sou mais nem menos porque estas coisas me acontecem. Tenho é um destino diferente.
– Qual é o perigo da vaidade?
– É ser uma daquelas cantoras terríveis que acha que toda a gente está ali para as servir. Depois, quando se cai, a queda é muito mais dolorosa.
– Tem encontrado casos desses?
– Sim, há algumas pessoas que têm o nariz mais arrebitado.
– Nota logo, quando as conhece?
– Nota-se logo. Sinto logo isso e afasto-me. Não quero ser incomodativa nem absorver esse tipo de comportamento. Obviamente, também tenho os meus dias e quando é preciso puxar dos galões também puxo.
– Dê-me um exemplo.
– Se chegar a um sítio e achar que não estão a tratar-me da forma devida. Dizerem-me: “Ponha ali as coisas e é ali ” Também não é bem assim!
– Já disse a frase das vedetas arrogantes: “Sabe quem eu sou?”
– Ai não, nunca! Isso é horrível! Mas sei de pessoas que já disseram A outra pessoa pode responder: e você, sabe quem eu sou? E respondo o quê?
– Mas já ouviu esta frase?
– Já. E sei de pessoas que a disseram. Mas é o cúmulo, não é? Era incapaz de fazer isso. Se for a um restaurante e achar que não me estão a servir devidamente nem sequer reclamo. Pago e nunca mais lá volto. Só isso.
– A Mariza é de grandes entusiasmos e grandes desilusões ou passa pelas coisas tranquila?
– Não sou de grandes entusiasmos, mas sou de grandes desilusões. Não gosto de me sentir entusiasmada.
– Tem medo do entusiasmo?
– Tenho medo que as coisas não aconteçam. A desilusão aí é maior.
– Daí que não assuma o sucesso.
– Isto só tem cinco anos, não pode ser assumido como sucesso. Foi tudo tão rápido que é assustador.
– Dizia que é fácil ‘perder o pé’...
– É. Eu ouço muitas músicas, absorvo muitas culturas, lido com muita gente. ‘Perder o pé’ é desviar-me do caminho que tenho de fazer.
– Também em termos pessoais?
– Também tenho medo.
– Que perigos tenta evitar?
– Por exemplo, ao fazer duas Opera House, de Sydney, esgotadas, com 15 por cento de portugueses e o resto australianos – e era a primeira vez que lá ia – é fácil ‘perder o pé’
– Qual é o perigo?
– É acharmo-nos o ‘supra-sumo da batata’! Mas depois é bom, porque não temos um Rolls-Royce à espera.
– Não vai a pé para o hotel?
– Não, mas carrego a mala, passo a roupa, arrumo o quarto...
– Ainda leva menos roupa para poder lavá-la à mão, no quarto?
– Sim! É um passatempo. Distrai-me.
– Já se escreveu a seu respeito a palavra diva. Gosta da palavra?
– Não. Sempre que a ouço, faz-me lembrar aquelas cantoras que têm mau humor. A Maria Callas era considerada a diva e atirava com coisas!
– Não tem os seus caprichos?
– O meu único capricho é ter uma garrafa de chá quente no camarim.
– Não exige uma sopa duas horas antes dos espectáculos?
– Sim, uma sopa duas horas antes. Não como em dias de concerto.
– Come sempre a sopinha, mesmo na Austrália?
– Em qualquer sítio. Desde que não seja sopa de tomate. Já estou farta de sopa de tomate.
– Não faz exigências extravagantes?
– Tipo Britney Spears? Tragam-me 1500 toalhas! Nós só somos 12. Andamos de carrinha, não tenho direito a Mercedes série S, nem a carros especiais. Tenho um sonho: ter um jacto privado! Mas isso é um sonho. Sonhar não se paga.
– Há tempos dizia que se imagina velhinha, numa taberna, na Mouraria, a cantar para duas ou três pessoas.
– Bêbedos, de certeza.
– Isso significa que isto se desvanece tudo um dia destes?
– Nada é eterno, nem a vida. Eu vejo a minha voz a ter um fim também.
– Mesmo assim, continua a imaginar-se a cantar, na Mouraria?
– A cantar, mas mal!
– Quando já estiver a cantar mal, continua a cantar?
– Se calhar continuo, no chuveiro. Adoro cantar mal no chuveiro.
– Há cantores que não sabem retirar-se a tempo...
– Eu gostaria de saber.
– Mas se vai continuar, velhinha
– Aí já estou retirada! Lá, numa taberna, enfiada na Mouraria, quem é que me vai ver? Mas aí devo ter mau feitio. Quando chegar para aí aos 60 anos começo a ter mau feitio. Vou dizer tudo aquilo que me apetecer.
'CHICHARROS COM ARROZ DE TOMATE'
CM – O que lhe custa mais nas digressões longas que tem feito?
M. – Ficar longe do meu País.
– Tem saudades de casa?
– Mais dos meus pais, que são a minha âncora.
– Sabe sempre onde está ou perde o norte?
– Às vezes não sei onde estou. Sei em que país estou mas não em que cidade.
– E já lhe aconteceu dizer: ‘Obrigado, Atenas’, estando em Buenos Aires?
– Não cometo esse tipo de erros porque não digo o nome da cidade. Digo boa noite, tento aprender uma ou duas palavras na língua do país. A pior coisa que acontece é acordar a meio da noite e não se saber onde se está.
– De que é que gosta menos no estrangeiro?
– Da comida. Sou magrinha mas gosto de comer bem!
– Há sítios onde sofre com a comida?
– Há. A comida chinesa é o meu escape: como muita sopa chinesa. Na Holanda, é croquetes. Ou se vai a um indiano, um chinês, um italiano ou um tailandês. Nós, portugueses, gostamos de comer bem, de boa comida, de pão.
– Quando volta para casa, como é que tira a barriga de misérias?
– Não vai acreditar: como chicharros fritos com arroz de tomate.
'NO FADO SÓ VÃO FICAR OS MELHORES'
CM – O fado continua na moda?
M. – Não gosto da palavra moda, porque o fado não é uma música de moda.
– Houve um período em que o fado não era comercialmente rentável e agora já é.
– Mas não é uma música de moda, porque nunca vai morrer. Este género de música não morre. Já tem 200 anos e nunca morreu. Tem é altos e baixos. Há sempre pessoas que vão transmitindo a mensagem.
– Tem ouvido as novas vozes que têm surgido?
– Algumas.
– Há alguém de que goste particularmente?
– Do Camané e da Aldina. Acho que a Aldina tem uma verdade muito própria e o Camané é um sentimentalão.
– Como é que se vai fazer a triagem entre os que ficam e os que inevitavelmente vão desaparecer daqui a três ou quatro anos?
– O mar deita fora aquilo que não quer. O público é que vai escolher aquilo que gosta e não gosta.
– Acredita que vão sobreviver os melhores ou o marketing vai ter um papel importante nessa escolha?
– No fado, só vão sobreviver os melhores. Aqueles que souberem transmitir melhor os sentimentos. E aqueles que as pessoas acharem que têm voz para cantar fado. Não há técnicas: ou canta ou não canta.
'O MEU SONHO É UMA CASA COM JARDIM'
CM – Se lhe saísse um daqueles prémios milionários do Euromilhões, o que fazia com o dinheiro?
M. – Não comprava uma torre nas Amoreiras, de certeza! [ndr: Tony Carreira disse recentemente que se ganhasse o Euromilhões comprava a torre das Amoreiras, onde tem um apartamento]. Daria a uma instituição, mas tinha de ver como é que o dinheiro era distribuído. Não dava o dinheiro todo, obviamente, mas algum.
– Qual seria a sua extravagância particular?
– Se calhar uma casa digna para viver.
– O jacto particular?
– Não, eu digo isso na brincadeira. Mas não sei se gostaria de ter um jacto particular. O meu grande sonho, que é uma coisa impossível, é ter uma casa em Lisboa com jardim.
– Um jardim grande?
– Que desse para plantar pelo menos quatro árvores. Quando os meus pais desaparecessem, eu plantaria uma árvore para cada um deles e contaria ali os meus segredos, as minhas mágoas, as minhas alegrias. A presença deles não desapareceria. Estavam ali naquelas árvores. E depois para mais duas pessoas que irão desaparecer – a vida é assim – eu plantaria essas outras duas árvores. Era esse o meu grande sonho. Mas tem de ser em Lisboa porque não consigo morar noutro sítio. Já pensei viver em Nova Iorque, já pensei Inglaterra, mas volto sempre.
– O que é que Lisboa tem de especial?
– A luz. É a minha Lisboa. É a minha menina.
PERFIL:
Nasceu em Moçambique mas cresceu na Mouraria, em Lisboa, e apaixonou-se pelo fado. Aos seis anos, Mariza já cantava em casas de fado e em 1999 foi descoberta num concerto de homenagem a Amália Rodrigues, no Coliseu dos Recreios. O primeiro trabalho, ‘Fado em Mim’, lançado por uma editora holandesa, surgiria em 2001. Estavam abertas as portas do sucesso também além-fronteiras. Em 2003 recebeu o prémio da BBC Radio 3 para Melhor Artista Europeia, na categoria de ‘world music’, e foi considerada Personalidade do Ano pela Imprensa estrangeira em Portugal. Seguiu-se ‘Fado Curvo’, o segundo disco, mais um êxito de vendas que a levou a esgotar salas em todo o Mundo. Nos últimos anos, recebeu prémios e distinções, abraçou causas e fez duetos com nomes sonantes como Sting ou Daniela Mercury. No final de 2005, foi nomeada embaixadora da Boa Vontade do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
Carlos Vaz Marques - CORREIO DA MANHÃ - 19.02.2006
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